domingo, 4 de dezembro de 2016

REQUIÉM PARA UM SONHO






          
Enquanto a velha mastiga, ele deseja. Revira a papa viscosa. Ouve as mesmas advertências da gorda entupida.
 “Ela fala o certo, mas sempre do jeito errado” o interlocutor remói enquanto saliva, no pensamento, a refeição dos seus sonhos em prato alheio.
No meio de outra mastigada (cavalar) da idosa, ele avança. Arranca o garfo das mãos surpresas e enfia-o na jugular que, de pronto, lhe espirra sem critérios. O moço alto e pálido sorri, como um amaldiçoado, mas satisfeito porque comerá carne, um ano depois. Experimenta a peça cozida, todavia a reprova. Acha melhor a do entorno aos buracos, ainda cuspindo vermelho. Pega a faca rente e degola a senhora, que lhe fornece a consumação dos instintos.
          - O que foi, rapaz? Ficou surdo?
          - Hã? Nada, vó... nada.
          - Você sabe que não pode comer carne, né? O médico te proibiu e ...
          - Tá, vó. Tá. Já sei, sei...
          A campainha toca.
Entre rápido e sereno, o moço se ergue. Jura defender a avó de quaisquer abusos, por isso explica a ela a necessidade de atender sozinho à solicitação externa. A velha se queixa de dores. Ele verifica a região indicada. Nota uma falha nas costuras (grossas) do pescoço. A campainha se repete. A senhora é, cuidadosamente, transportada e acomodada no sótão. O moço pálido se constrange, mas tem de resguardá-la. Sabe que ela abomina policiais.


(Conto selecionado e publicado na 1ª edição da Revista Litere-se).

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